terça-feira, 26 de outubro de 2010

A privatização no Brasil

Marcelo Bemerguy (1)
O tema privatização ocupou intensamente a agenda de debates na década de 1990, em seu início, na gestão de Fernando Collor, e em seu meado, início do governo de Fernando Henrique Cardoso. Desde então, argumentos contra e a favor da privatização tem sido produzidos em perspectivas econômicas, administrativas, sociais ou meramente eleitorais.
A ênfase das privatizações ocorridas no governo Collor foram as empresas do setor siderúrgico e petroquímico. Apesar disso, cessaram as contratações para estatais de todos os setores e diversos programas de demissão voluntária foram implantados e as empresas perderam muitos de seus melhores empregados. Algumas estatais foram simplesmente liquidadas sem que nenhuma outra estrutura as substituísse, como foi o caso da Portobras.
No governo de Fernando Henrique Cardoso, a tarefa foi mais complexa, pois foram privatizadas, ou criadas as condições para privatizar, as empresas provedoras de serviços e facilidades infraestruturais tais como telefonia, energia, ferrovias, portos e rodovias.
Em geral, especialmente do ponto de vista da comunicação governamental, a legitimação do processo de privatização baseou-se numa lógica simplória: o setor privado, por ser mais eficiente do que o setor público, pode oferecer mais e melhores serviços a um custo menor. O provimento de bens e serviços diretamente pelo estado seria, portanto, mais cara e de menor qualidade.
A eficácia persuasiva dessa simplificação foi extraordinária e factualmente corroborada pela baixa penetração, baixa qualidade e, em alguns setores, como no caso da telefonia, pelo alto custo dos serviços. Com isso, aspectos mais complexos e mais relevantes capazes de explicar a ineficiência estatal deixaram de ser discutidos, praticamente circunscrevendo o debate sobre a privatização à questão da propriedade dos ativos.
Some-se a isso a necessidade de financiamento do setor público, ou seja, a privatização, a um só tempo, transferiria o provimento ao setor privado, capaz de fazer mais, melhor e por menos, e ainda aportaria recursos para o estado que poderiam ser revertidos em benefícios imediatos à população.
Ante essa lógica dicotômica, foram escamoteados aspectos relevantes do debate sobre as privatizações, tais como:
(i) o modelo tarifário vigente não refletia e não cobria adequadamente os custos dos serviços, independente da propriedade dos ativos;
(ii) o estado, por sua vez, não tinha capacidade fiscal para investir na manutenção e na expansão da infraestrutura;
(iii) ao final da década de 1990, quando foram consumadas as grandes privatizações, as empresas estatais tinham sido vigorosamente esvaziadas por programas de demissão voluntária, aposentadorias e cessões de empregados a outros órgãos do governo;
(iv) ao tempo que as empresas foram debilitadas, não se construiu capacidade, em outras áreas do governo, para formular, planejar e regular a expansão da oferta dos serviços que deixavam de ser diretamente providos pelo estado; e
(v) o aumento de penetração dos serviços prestados nem sempre seria economicamente viável, e o estado deveria estar preparado para provê-los diretamente ou para fornecer os incentivos necessários para que as empresas o fizessem. Em outras palavras, a presença do estado no provimento ou no financiamento não poderia ser completamente descartada.
Ainda hoje, quando se retoma a discussão acerca dos resultados do processo de privatização, a ênfase argumentativa é dedicada ao simples fato de que a transferência da propriedade dos ativos à iniciativa privadas, dadas as suas virtudes gerenciais intrínsecas, propiciou aumento da oferta, redução de preços e melhoria na qualidade dos serviços prestados.
A questão central, contudo diz respeito ao fato de que, o financiamento dos investimentos em infraestrutura dependia fortemente da redefinição das políticas tarifárias, pois só assim seria possível dar sustentabilidade à operação e viabilizar novos investimentos destinados à expansão da oferta. Esse modelo tarifário foi sistematicamente negado às empresas estatais e só foi revisto como condição para a privatização.
Diante desse panorama, pode-se dizer que a debilidade do estado como provedor de serviços de infraestrutura é consequência de uma política antiestado deliberadamente conduzida ao longo dos mandatos de Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso e que levou à inevitável conclusão de que o setor público estatal era incapaz de operar, investir e expandir a oferta de serviços públicos.
A privatização no setor de infraestrutura no Brasil, a despeito dos diversos objetivos declarados que as nortearam, acabaram tendo o tempo de sua implementação definido mais pela agenda fiscal do que por qualquer outro fator. A redução do déficit fiscal foi sustentada por dois pilares fundamentais: as privatizações e os cortes com o custeio da gestão pública.
Mesmo as empresas não privatizadas foram preparadas para serem transferidas aos particulares, principalmente por meio de programas de incentivo à demissão, que causaram significativa perda de massa crítica das empresas do governo e o consequente esvaziamento técnico do setor estatal. O esvaziamento também se deu por meio da cessação de aporte de recursos fiscais para investimento na operação, expansão e melhoria dos serviços prestados.
Esse fator foi determinante para que a transição de um modelo baseado no investimento público para um outro em que os investimentos seriam providos por agentes privados ocorresse sem uma base institucional capaz de suportar e gerir uma mudança de tal magnitude. O setor elétrico brasileiro é o exemplo mais concreto deste panorama.
Historicamente, no Brasil, o planejamento da expansão da infra-estrutura era elaborado dentro das empresas estatais. No setor de energia, por exemplo, a Eletrobrás e a Petrobrás cumpriram esse papel em suas respectivas áreas de atuação, ainda que sem uma visão integrada.
Naturalmente, por mais que sejam importantes instrumentos de implementação de políticas de governo, cada uma dessas empresas tem seu processo decisório orientado também por interesses outros que não os do governo. Dirigentes, funcionários, acionistas minoritários, fornecedores e grandes consumidores que dependem dos insumos ou das facilidades geradas por essas indústrias podem determinar a condução de diversas questões empresariais em detrimento dos interesses do governo ou mesmo do interesse social geral.
Argumentos assim reforçam a tese de que deve haver, no interior da administração pública direta, uma burocracia capaz de delinear marcos estratégicos e captar as percepções dos diversos agentes interessados no desenvolvimento da infraestrutura nacional, sejam eles produtores, consumidores, concessionários, usuários ou mesmo representantes de outros setores governamentais potencialmente afetados.
Ocorre que os ministérios setoriais não tinham a tradição de formular e enunciar políticas e diretrizes para a oferta de serviços e para a expansão do setor de infraestrutura. Essa tarefa era cumprida, de forma segmentada e não sistêmica, pelas empresas estatais, uma vez que foram criadas justamente para construir as bases da infraestrutura nacional. O processo de privatização levado a cabo na década de 1990 não preocupou com esse fenômeno.
Durante a privatização - ou a preparação para a privatização -, grande parte da competência de planejamento foi perdida nos planos incentivados de demissão. Nesse tempo, não houve um movimento compensatório de reforço das equipes da administração direta que possibilitasse aos ministérios gerir o processo de mudança.
As agências reguladoras, recém-criadas, com a possibilidade de constituir um quadro de servidores a partir de contratos temporários, acabaram se tornando um polo de atração dessa mão de obra egressa das empresas estatais. As empresas privadas também começavam um processo de contratação desse mesmo público com o objetivo de capacitá-las a atuar nos promissores mercados que se abriam.
O cenário resultante da mudança foi devastador para o setor público: empresas estatais esvaziadas; a administração direta - leia-se ministérios - não recrutou nem capacitou pessoal para absorver as tarefas de assessoramento na formulação de políticas e diretrizes; e as agências reguladoras, ainda que padecedoras do mesmo vício das estatais - visão segmentada, não sistêmica -, acabaram se incumbindo, na prática, de formular e implementar políticas e diretrizes.
As agências, portanto, num momento inicial, acumularam grande poder, pois geriam contratos, planejavam a expansão e outorgavam as concessões. Agregue-se a esse ambiente a precariedade das relações de trabalho dos funcionários dessas autarquias, quase todos contratados temporariamente, sem o horizonte de uma carreira dentro do setor público. A perspectiva profissional mais concreta para esse pessoal era, portanto, a contratação pelas empresas reguladas, criando, como se viu intensamente nos anos seguintes o chamado “efeito porta giratória”, que significa o intercâmbio sistemático entre reguladores e agentes do mercado, em ambos os sentidos.


1) Engenheiro mecânico, especialista em regulação dos serviços públicos concedidos, especialista em gerência e operação de energia e auditor federal de controle externo do Tribunal de Contas da União.

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